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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020



CARTA DE NIZHNY TAGIL SOBRE O PATRIMÓNIO INDUSTRIAL

The International Committee for the Conservation of the


Industrial Heritage (TICCIH)


Julho 2003


O TICCIH – The International Committee for the Conservation of the

Industrial Heritage (Comissão Internacional para a Conservação do

Património Industrial) é a organização mundial consagrada ao

património industrial, sendo também o consultor especial do ICOMOS

para esta categoria de património. O texto desta Carta sobre o

Património Industrial foi aprovado pelos delegados reunidos na

Assembleia Geral do TICCIH, de carácter trienal, que se realizou em

Nizhny Tagil em 17 de Julho de 2003, o qual foi posteriormente

apresentado ao ICOMOS para ratificação e eventual aprovação

definitiva pela UNESCO


Preâmbulo


Os períodos mais antigos da história da Humanidade são definem-se

através dos vestígios arqueológicos que testemunharam mudanças

fundamentais nos processos de fabrico de objectos da vida quotidiana,

e a importância da conservação e do estudo dos testemunhos dessas

mudanças é universalmente aceite.

Desenvolvidas a partir da Idade Média na Europa, as inovações na

utilização da energia assim como no comércio conduziram, nos finais


do século XVIII, a mudanças tão profundas como as que ocorreram

entre o Neolítico e a Idade do Bronze. Estas mudanças geraram

evoluções sociais, técnicas e económicas das condições de produção,

suficientemente rápidas e profundas para que se fale da ocorrência de

uma Revolução. A Revolução Industrial constituiu o início de um

fenómeno histórico que marcou profundamente uma grande parte da

Humanidade, assim como todas as outras formas de vida existente no

nosso planeta, o qual se prolonga até aos nossos dias.

Os vestígios materiais destas profundas mudanças apresentam um

valor humano universal e a importância do seu estudo e da sua

conservação deve ser reconhecida.

Os delegados reunidos na Rússia por ocasião da Conferência 2003 do

TICCIH desejam, por conseguinte, afirmar que os edifícios e as

estruturas construídas para as actividades industriais, os processos e

os utensílios utilizados, as localidades e as paisagens nas quais se

localizavam, assim como todas as outras manifestações, tangíveis e

intangíveis, são de uma importância fundamental. Todos eles devem

ser estudados, a sua história deve ser ensinada, a sua finalidade e o

seu significado devem ser explorados e clarificados a fim de serem

dados a conhecer ao grande público. Para além disso, os exemplos

mais significativos e característicos devem ser inventariados,

protegidos e conservados, de acordo com o espírito da carta de

Veneza, para uso e benefício do presente e do futuro1

.


1. Definição de património industrial


1 A Carta do Património Industrial deverá incluir as importantes Cartas anteriores,

como a Carta de Veneza (1964) e a Carta de Burra (1994), assim como a

Recomendação R(90) 20 do Conselho da Europa.


O património industrial compreende os vestígios da cultura industrial

que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitectónico ou

científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas,

fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos

e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia,

meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas,

assim como os locais onde se desenvolveram actividades sociais

relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou

de educação.

A arqueologia industrial é um método interdisciplinar que estuda todos

os vestígios, materiais e imateriais, os documentos, os artefactos, a

estratigrafia e as estruturas, as implantações humanas e as paisagens

naturais e urbanas2


, criadas para ou por processos industriais. A

arqueologia industrial utiliza os métodos de investigação mais

adequados para aumentar a compreensão do passado e do presente

industrial.

O período histórico de maior relevo para este estudo estende-se desde

os inícios da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do

século XVIII, até aos nossos dias, sem negligenciar as suas raízes pré

e proto-industriais. Para além disso, apoia-se no estudo das técnicas

de produção, englobadas pela história da tecnologia.


2. Valores do património industrial


2 Para facilitar a compreensão, a palavra “sítios” será utilizada para referir as

paisagens, instalações, edifícios, estruturas e maquinaria, excepto quando estes

termos forem utilizados num sentido mais específico.


i. O património industrial representa o testemunho de

actividades que tiveram e que ainda têm profundas

consequências históricas. As razões que justificam a

protecção do património industrial decorrem

essencialmente do valor universal daquela

característica, e não da singularidade de quaisquer

sítios excepcionais.


ii. O património industrial reveste um valor social como

parte do registo de vida dos homens e mulheres

comuns e, como tal, confere-lhes um importante

sentimento identitário. Na história da indústria, da

engenharia, da construção, o património industrial

apresenta um valor científico e tecnológico, para além

de poder também apresentar um valor estético, pela

qualidade da sua arquitectura, do seu design ou da sua

concepção.


iii. Estes valores são intrínsecos aos próprios sítios

industriais, às suas estruturas, aos seus elementos

constitutivos, à sua maquinaria, à sua paisagem

industrial, à sua documentação e também aos registos

intangíveis contidos na memória dos homens e das suas

tradições.


iv. A raridade, em termos de sobrevivência de processos

específicos de produção, de tipologias de sítios ou de

paisagens, acrescenta-lhes um valor particular e devem


ser cuidadosamente avaliada. Os exemplos mais

antigos, ou pioneiros, apresentam um valor especial.


3. A importância da identificação, do inventário e da

investigação


i. Todas as colectividades territoriais devem identificar,

inventariar e proteger os vestígios industriais que

pretendem preservar para as gerações futuras.


ii. Os levantamentos de campo e a elaboração de

tipologias industriais devem permitir conhecer a

amplitude do património industrial. Utilizando estas

informações, devem ser realizados inventários de todos

os sítios identificados, os quais devem ser concebidos

de forma a proporcionarem uma pesquisa fácil e um

acesso livre por parte do público. A informatização e o

acesso on-line na Internet constituem objectivos

importantes.


iii. O inventário constitui uma componente fundamental do

estudo do património industrial. O inventário completo

das características físicas e das condições de um sítio

deve ser realizado e conservado num arquivo público,

antes de se realizar qualquer intervenção. Muitas

informações podem ser obtidas se o inventário for

efectuado antes do abandono da utilização de um

determinado processo industrial ou do fim da actividade


produtiva de um sítio. Os inventários devem incluir

descrições, desenhos, fotografias, e um registo em

vídeo do referido sítio industrial ainda em

funcionamento, com as referências das fontes

documentais existentes. As memorias das pessoas que

aí trabalharam constituem uma fonte única e

insubstituível e devem ser também registadas e

conservadas, sempre que possível.


iv. A investigação arqueológica dos sítios industriais

históricos constitui uma técnica fundamental para o seu

estudo. Ela deve ser realizada com o mesmo nível de

elevado rigor com que se aplica no estudo de outros

períodos históricos.


v. São necessários programas de investigação histórica

para fundamentar as politicas de protecção do

património industrial. Devido à interdependência de

numerosas actividades industriais, uma perspectiva

internacional pode auxiliar na identificação dos sítios e

dos tipos de sítios de importância mundial.


vi. Os critérios de avaliação de instalações industriais

devem ser definidos e publicados a fim de que o público

possa tomar conhecimento de normas racionais e

coerentes. Com base numa investigação apropriada,

estes critérios devem ser utilizados para identificar os

mais significativos vestígios de paisagens, complexos

industriais, sítios, tipologias de implantação, edifícios,


estruturas, máquinas e processos industriais mais

significativos.


vii. Os sítios e estruturas de reconhecida importância

patrimonial devem ser protegidos por medidas legais

suficientemente sólidas para assegurarem a sua

conservação. A Lista do Património Mundial da UNESCO

deverá prestar o legítimo reconhecimento ao enorme

impacto que a industrialização teve na cultura da

Humanidade.


viii. Deve ser definido o valor dos sítios mais significativos

assim como estabelecidas directivas para futuras

intervenções. Devem ser postas em prática medidas

legais, administrativas e financeiras, necessárias para

conservar a sua autenticidade.


ix. Os sítios ameaçados devem ser identificados a fim de

que possam ser tomadas as medidas apropriadas para

reduzir esse risco e facilitar eventuais projectos de

restauro e de reutilização.


x. A cooperação internacional constitui uma perspectiva

particularmente favorável para a conservação do

património industrial, nomeadamente através de

iniciativas coordenadas e partilha de recursos. Devem

ser elaborados critérios compatíveis para compilar

inventários e bases de dados internacionais.


4. Protecção legal


i. O património industrial deve ser considerado como uma

parte integrante do património cultural em geral.

Contudo, a sua protecção legal deve ter em

consideração a sua natureza específica. Ela deve ser

capaz de proteger as fábricas e as suas máquinas, os

seus elementos subterrâneos e as suas estruturas no

solo, os complexos e os conjuntos de edifícios, assim

como as paisagens industriais. As áreas de resíduos

industriais, assim como as ruínas, devem ser

protegidas, tanto pelo seu potencial arqueológico como

pelo seu valor ecológico.


ii. Programas para a conservação do património industrial

devem ser integrados nas politicas económicas de

desenvolvimento assim como na planificação regional e

nacional.


iii. Os sítios mais importantes devem ser integralmente

protegidos e não deve ser autorizada nenhuma

intervenção que comprometa a sua integridade histórica

ou a autenticidade da sua construção. A adaptação

coerente, assim como a reutilização, podem constituir

formas apropriadas e económicas de assegurar a

sobrevivência de edifícios industriais, e devem ser

encorajadas mediante controles legais apropriados,

conselhos técnicos, subvenções e incentivos fiscais.


iv. As comunidades industriais que estão ameaçadas por

rápidas mudanças estruturais devem ser apoiadas pelas

autoridades locais e governamentais. Devem ser

previstas potenciais ameaças ao património industrial

decorrentes destas mudanças, e preparar planos para

evitar o recurso a medidas de emergência.


v. Devem ser estabelecidos procedimentos para responder

rapidamente ao encerramento de sítios industriais

importantes, a fim de prevenir a remoção ou a

destruição dos seus elementos significativos. Em caso

necessário, as autoridades competentes devem dispor

de poderes legais para intervir quando for necessário, a

fim de protegerem sítios ameaçados.


vi. Os governos devem dispor de organismos de consulta

especializados que possam proporcionar pareceres

independentes sobre as questões relativas à protecção

e conservação do património industrial, os quais devem

ser consultados em todos os casos importantes.


vii. Devem ser desenvolvidos todos os esforços para

assegurar a consulta e a participação das comunidades

locais na protecção e conservação do seu património

industrial.


viii. As associações e os grupos de voluntários

desempenham um papel importante na inventariação


dos sítios, promovendo a participação pública na sua

conservação, difundindo a informação e a investigação,

e como tal constituem parceiros indispensáveis no

domínio do património industrial.


5. Manutenção e conservação


i. A conservação do património industrial depende da

preservação da sua integridade funcional, e as

intervenções realizadas num sítio industrial devem,

tanto quanto possível, visar a manutenção desta

integridade. O valor e a autenticidade de um sítio

industrial podem ser fortemente reduzidos se a

maquinaria ou componentes essenciais forem retirados,

ou se os elementos secundários que fazem parte do

conjunto forem destruídos.


ii. A conservação dos sítios industriais requer um

conhecimento profundo do objectivo ou objectivos para

os quais foram construídos, assim como dos diferentes

processos industriais que se puderam ali desenvolver.

Estes podem ter mudado com o tempo, mas todas as

antigas utilizações devem ser investigadas e avaliadas.


iii. A conservação in situ deve considerar-se sempre como

prioritária. O desmantelamento e a deslocação de um

edifício ou de uma estrutura só serão aceitáveis se a


sua destruição for exigida por imperiosas necessidades

sociais ou económicas.


iv. A adaptação de um sítio industrial a uma nova

utilização como forma de se assegurar a sua

conservação é em geral aceitável salvo no caso de sítios

com uma particular importância histórica. As novas

utilizações devem respeitar o material específico e os

esquemas originais de circulação e de produção, sendo

tanto quanto possível compatíveis com a sua anterior

utilização. É recomendável uma adaptação que evoque

a sua antiga actividade.


v. Adaptar e continuar a utilizar edifícios industriais evita o

desperdício de energia e contribui para o

desenvolvimento económico sustentado. O património

industrial pode desempenhar um papel importante na

regeneração económica de regiões deprimidas ou em

declínio. A continuidade que esta reutilização implica

pode proporcionar um equilíbrio psicológico às

comunidades confrontadas com a perda súbita de uma

fonte de trabalho de muitos anos.


vi. As intervenções realizadas nos sítios industriais devem

ser reversíveis e provocar um impacto mínimo. Todas

as alterações inevitáveis devem ser registadas e os

elementos significativos que se eliminem devem ser

inventariados e armazenados num local seguro.

Numerosos processos industriais conferem um cunho


específico que impregna o sítio e do qual resulta todo o

seu interesse.


vii. A reconstrução, ou o retorno a um estado

anteriormente conhecido, deverá ser considerada como

uma intervenção excepcional que só será apropriada se

contribuir para o reforço da integridade do sítio no seu

conjunto, ou no caso da destruição violenta de um sítio

importante.


viii. Os conhecimentos que envolvem numerosos processos

industriais, antigos ou obsoletos, constituem fontes de

importância capital cuja perda poderá ser insubstituível.

Devem ser cuidadosamente registados e transmitidos

às novas gerações.


ix. Deve promover-se a preservação de registos

documentais, arquivos empresariais, plantas de

edifícios, assim como exemplares de produtos

industriais.


6. Educação e formação


i. Uma formação profissional especializada, abordando os

aspectos metodológicos, teóricos e históricos do

património industrial deve ser ministrada no ensino

técnico e universitário.


ii. Devem ser elaborados materiais pedagógicos

específicos abordando o passado industrial e o seu

património para os alunos dos níveis primário e

secundário.


7. Apresentação e interpretação


i. O interesse e a dedicação do público pelo património

industrial e a apreciação do seu valor constituem os

meios mais seguros para assegurar a sua preservação.

As autoridades públicas devem explicar activamente o

significado e o valor dos sítios industriais através de

publicações, exposições, programas de televisão,

Internet e outros meios de comunicação,

proporcionando o acesso permanente aos sítios

importantes e promovendo o turismo nas regiões

industriais.


ii. Os museus industriais e técnicos, assim como os sítios

industriais preservados, constituem meios importantes

de protecção e interpretação do património industrial.


iii. Os itinerários regionais e internacionais do património

industrial podem esclarecer as contínuas transferências

de tecnologia industrial e o movimento em larga escala

das pessoas que as mesmas podem ter provocado,

promovendo um afluxo do público interessado em


conhecer uma nova perspectiva do património

industrial.


Nizhny Tagil, 17 de Julho de 2003


[Tradução da responsabilidade da APPI – Associação Portuguesa para

o Património Industrial.]

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